quinta-feira, 18 de março de 2021

A Liga de Snyder

Um diretor deveras criticado teve seu momento de redenção. E após assistir a Liga da Justiça de Zack Snyder, é preciso admitir que as críticas a seus trabalhos anteriores continuam válidas e os elogios a esta versão estendida são totalmente pertinentes.
 

Antes de iniciar, o aviso amigo: texto COM SPOILERS. Siga por sua conta e risco.
 
O Universo Cinematográfico DC tem sido uma montanha-russa em termos de consistência. Choveram críticas e elogios desde o primeiro filme, O Homem de Aço. Eu mesmo teci meus comentários sobre este filme aqui no blog. Vieram os demais títulos e o panorama questionável se mantinha. E no meio de todo o turbilhão estava um nome: Zack Snyder.
 

Elogiado por muitos, criticado por outros tantos, Snyder dividiu opiniões com suas escolhas e suas interpretações para alguns dos mais populares super-heróis já criados. Discorri brevemente sobre o conjunto de sua obra neste texto. Veio então o filme da Liga da Justiça. Com problemas de bastidores, atrasos, refilmagens, mudança de diretor e uma guinada no tom da produção, o resultado foi um filme pouco memorável, com uma trama apressada e até confusa, que fechou uma trilogia repleta de equívocos e deixou o universo de filmes da DC a perigo, como visto nesta análise.

O tempo passou, vieram os filmes de Aquaman, Shazam e a segunda aventura da Mulher-Maravilha, todos com enfoques mais descompromissados e bem-humorados, diferente do tom adotado por Snyder nos filmes anteriores. Ao mesmo tempo, mais detalhes do filme da Liga começaram a surgir e ficou claro que a versão que foi às telas pouco tinha do que Snyder fizera antes de se afastar da produção. O produto final foi uma colcha de retalhos bordada a partir de desejos do estúdio, com diversos produtores a se intrometer na forma como a trama deveria ser contada e com Joss Whedon, diretor dos dois primeiros filmes dos Vingadores, tentando repetir a fórmula dos filmes da Marvel e falhando miseravelmente (e hoje se sabe de outros tantos problemas entre Whedon e membros do elenco durante as refilmagens). 

Os fãs ficaram em polvorosa e passaram a demandar que fosse disponibilizada a versão pretendida por Snyder. Seja pela movimentação nas interwebz ou por uma estratégia pensada desde o início (ou o mais puro oportunismo), o estúdio decidiu bancar a idéia de trazer à tona a visão original do diretor, em uma projeção de quase quatro horas de duração. E bastou o filme ser lançado para que a chuva de elogios iniciasse, de forma pouco vista desde que Snyder dirigiu 300, ouso afirmar.
 
Mas, afinal, qual a verdade? A versão de cinema era muito ruim? A versão estendida é uma obra-prima? Ambas as opções? Em minha opinião, acho que a verdade está no meio-termo. Ainda que esteja longe de ser o melhor filme de super-heróis já feito, a versão de Snyder é, sim, infinitamente melhor do que a versão de cinema. Mesmo assim, tem seus problemas. Alguns vícios do diretor continuam presentes, embora em menor escala.
 
O filme tem um escopo épico, ainda mais evidente por sua duração. Mas mesmo durante a projeção, é possível perceber cenas dispensáveis, que, ainda que forneçam mais informações e ajudem a desvendar diversos aspectos sobre os personagens, poderiam facilmente ficar de fora, sem maiores alterações à trama.

Muitas das piadas vistas na versão de cinema foram completamente abolidas nesta versão estendida. O Super-Homem piadista deu lugar ao personagem introspectivo dos filmes anteriores, mas claramente mais agradável e menos enfadonho. E o uniforme negro ficou bacana, sim. Quando escrevo isto, entenda: sou alguém que sempre vai preferir o uniforme clássico, com as cores características. E em se tratando do uniforme negro, sempre terei predileção pela ausência da capa. Com tudo isto, quero apenas afirmar que o visual funciona

Em termos práticos, as primeiras horas do filme servem para "preparar o cenário", mostrar as origens de alguns personagens e suas motivações. Depois disto a Liga se reúne e entra em ação. Com exceção da cena inicial, que mostra a morte do Super-Homem, só vemos Bruce Wayne vestido como Batman quando o filme se aproxima das duas horas de projeção.

Todos os heróis ganham mais tempo para brilharem. A Mulher-Maravilha deixou de ser uma coadjuvante de luxo e se tornou mais relevante na trama. O mesmo vale para o Aquaman, que tem seu relacionamento com Mera e Vulko ampliado e melhor apresentado. Flash e Cyborg se tornaram, de fato, mais heróicos e não apenas o alívio cômico do filme (embora o Flash se mantenha responsável por alguns dos momentos mais divertidos). O retorno do Super-Homem é tocante, quando ele veste o uniforme negro, relembra os ensinamentos de Jonathan Kent e Jor-El e finalmente concilia suas duas origens. Infelizmente, o efeito de pedrinhas flutuando quando ele se prepara para alçar vôo ainda se faz presente.

O Lobo da Estepe é o antagonista principal, mas o grande vilão, obviamente, é Darkseid, que mostra um pouco de seu poder em cenas de flashback. Infelizmente, ele não entra em confronto direto com os heróis. Uma pena porque, ao que parece, isto não acontecerá tão cedo.

O filme é dividido em sete partes (seis capítulos e um epílogo). E isto me fez pensar que talvez o melhor lugar para Zack Snyder sejam plataformas em que ele possa desenvolver tramas episódicas, sejam séries ou mini-séries, com tempo de sobra para apresentar seus conceitos.

Na tentativa de tornar a trama ainda mais adulta e "edgy", os heróis falam palavrões. Não são em grande quantidade, mas estão lá. Sinceramente? Desnecessário.

Kal-El voltou da morte mais brando, mas ainda guarda um pouco do personagem implacável visto outrora. Basta perceber que o Super-Homem teria matado Lobo da Estepe na base da pancada (só foi interrompido pela aparição de Darkseid). E os outros heróis assistiram a tudo sem se manifestar, até mesmo com ares de aprovação. Fica óbvio quando Aquaman ataca Lobo da Estepe pelas costas com seu tridente e a Mulher-Maravilha decepa o vilão. Por mais que se trate de um monstro maligno de outro universo, ainda assim tais ações dos heróis parecem descabidas, mais exemplos da interpretação equivocada sobre heroísmo que Snyder aplicou às produções anteriores.

Alguns efeitos visuais destoam, parecem até precários. Nada que afete a experiência, de qualquer forma. Como a cena em que Darkseid coloca sua mão no ombro do Super-Homem. Muito provavelmente "recortaram" Henry Cavill da cena de "O Homem de Aço", após o herói matar Zod. Já em seqüências filmadas especialmente para esta versão, algumas pequenas discrepância também são observadas. Por exemplo, durante o epílogo, quando Bruce Wayne é visitado pelo Caçador de Marte (Ajax, para os veteranos), se percebe a mudança na forma física de Ben Affleck, um pouco menos "encorpado" do que no resto do filme.


Talvez a melhor indicação do que está por vir seja justamente a seqüência em que o Flash altera a passagem do tempo. Afinal, ele voltou no tempo ou fez o tempo retroceder? O futuro. o passado, é tudo agora? Dr. Manhattan ficaria orgulhoso deste momento, que abre as portas para o multiverso da DC nos cinemas.

O mais interessante é que, agora, a versão de cinema pode ser vista como mais uma possibilidade do multiverso. Não precisa ser obrigatoriamente descartada. Pode ter acontecido em outra realidade. Ou não. Fica a cargo do espectador imaginar.

O epílogo deixa um "gostinho de quero mais". Ou poucos minutos com o Coringa só atestaram como Jared Leto foi desperdiçado no filme do Esquadrão Suicida.

Foi bacana finalmente ver o Caçador de Marte. Afinal, ele é um dos membros fundadores da Liga nos gibis clássicos e até deveria ter uma participação mais relevante na trama.


A versão estendida é dedicada à filha de Snyder, Autumn, que cometeu suicídio durante a produção, um dos motivos do afastamento do diretor. Especula-se que as críticas a Snyder (incluindo ameaças por parte de imbecis que se dizem "fãs") teriam contribuído para o ato. Tudo muito triste. Por estas e outras, mesmo com problemas, mesmo não sendo uma obra-prima, a Liga da Justiça de Zack Snyder é uma bela redenção para o diretor.

Assisti ao filme do início ao fim, quase sem pausas. E foi uma experiência gratificante. Ficou uma sensação de desfecho, apesar das inconsistências e daqueles detalhes que deixam os fãs de longa data com algumas "pulgas atrás da orelha". Ainda assim, o fato é que a Liga de Snyder é, sim, um bom filme, ao qual pretendo voltar outras vezes no futuro. Ou no passado. Tudo é agora.