quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O Doutrinador

Assisti a O Doutrinador, filme brasileiro baseado nas HQs criadas por Luciano Cunha, a apresentar um anti-herói violento que espalha o terror aos maiores inimigos da sociedade: os políticos corruptos.


Eis minhas impressões (texto com SPOILERS):

De início somos apresentados ao protagonista, Miguel Montesanti, um agente especial de uma força-tarefa responsável pela prisão do governador (qualquer semelhança com um certo governador de um certo estado de uma certa cidade maravilhosa não é mera coincidência). A seguir, conhecemos sua vida pessoal, sua ex-esposa e sua filha. E testemunhamos a tragédia que os acomete (a mesma que afeta milhões de brasileiros): uma bala perdida, um hospital público sem condições de funcionamento e uma vida inocente ceifada pela violência e pelo descaso. E tudo isto oriundo de uma das maiores mazelas: a corrupção no meio político.

Traumatizado, Miguel se envolve em um protesto contra o governador que ele havia prendido, mas que foi solto por tecnicalidades jurídicas e pelo "toma lá, dá cá" político. É o estopim para o nascimento do anti-herói. Enfurecido e disposto a tudo para acabar com os políticos corruptos do país. Sem meias palavras, sem frases de efeito, sem aviso prévio. Quando menos se espera, o Doutrinador ataca.

Miguel é auxiliado por Nina, uma hacker e única pessoa que conhece sua identidade. Entretanto, para conseguir a ajuda de Nina, Miguel não hesita em coagi-la ou usar de chantagem.


Este é o panorama no qual a trama se desenvolve. O Doutrinador trava uma guerra sem fim (e sem limites) contra os corruptos, o que o leva até o presidente do país.

Infelizmente, a origem do anti-herói, embora contundente, é apresentada rapidamente, o que acaba não causando o impacto esperado quando a tragédia acontece na vida do personagem (e quando ele começa a tomar decisões questionáveis). E isto também afeta uma cena-chave: quando ele mata um "inocente" por acidente e acaba se questionando sobre suas ações. Até mesmo o nome "Doutrinador" surge na trama sem uma explicação mais aprofundada.

Ainda assim, é uma ótima produção, com cenas de ação competentes e bem coreografadas, boa trilha sonora, efeitos especiais corretos. As atuações de Kiko Pissolato e Tainá Medina se destacam, obviamente, como Miguel e Nina. Entretanto, o roteiro sofre com situações apressadas e diálogos engessados, em alguns momentos.

À medida que a ação se desenrola, o espectador passa a se questionar se deve mesmo torcer pelo protagonista, cada vez mais frio e violento em sua cruzada. E aqui reside um ponto alto do filme. Propõe um questionamento sem tom professoral. Cabe ao espectador (que conhece os motivos) buscar em sua própria consciência a justificativa para apoiar ou não as ações do Doutrinador.


A produção inaugura uma nova fase no cinema brasileiro, das adaptações de HQs nacionais. Obviamente, não foi a primeira. Outros personagens de histórias em quadrinhos já ganharam as telonas e telinhas brasileiras no passado. Mas "O Doutrinador" é uma revigorante retomada deste filão. O anti-herói ainda terá uma série de TV. Outros tantos projetos já estão em desenvolvimento, incluindo um universo cinematográfico integrado, que reunirá outros personagens do Universo Guará. É empolgante ver produções cinematográficas nacionais baseadas em material nacional, ainda mais como "artigo de cultura pop". Que venham mais personagens, filmes, séries.


Confesso que nunca li uma HQ do Doutrinador. Exceto por uma ou outra imagem do personagem que vi nas interwebz, só fui tomar conhecimento deste a partir do filme. A obra cinematográfica toma diversas liberdades criativas em relação aos gibis (é "gibi", sim, Nina). Por exemplo, nos gibis a identidade e a origem do anti-herói nunca foram reveladas, o que aumenta a aura de mistério. Para o filme, foi preciso criar este arco de desenvolvimento, para aguçar o interesse do espectador.

O filme se encerra com uma mensagem realista (e bastante similar a obras como "Tropa de Elite 2" e "O Mecanismo"): somos todos corruptos. Nossa sociedade, nossa cultura, nossa burocracia e nossa política nos forçam a "dar um jeito", o velho "jeitinho brasileiro". Buscamos levar vantagem, para não "bancarmos os trouxas", porque se não o fizermos, certamente alguém o fará. E pra mudar esta realidade, ainda vai levar muito tempo. Até que isto aconteça, cuidado com o Doutrinador.