quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Discovery à deriva?

Resolvi comentar sobre a nova iteração de Jornada nas Estrelas, Star Trek Discovery.


A sensação até o momento é de uma série que começa de forma irregular, mas que aos poucos parece encontrar o caminho.


Nos primeiros episódios, apesar da super-produção e do elenco competente (e assim como muitas produções atuais), Star Trek Discovery se perde em alegorias politicamente corretas e "mimimis disfarçados". As reflexões francas que a Série Original promovia a respeito de questões sociais sob o manto da ficção científica são substituídas por uma visão estreita e unilateral.

Há pouca exploração. Em apenas um ou dois episódios os personagens vão a algum planeta e encontram novas formas de vida e novas civilizações. O foco é um conflito militar pouco interessante (o interesse fica mesmo em ver como a nave e seu motor ultra-poderoso são usados). O desenvolvimento dos personagens é irregular, sobrepujado em diversos momentos por discursos enfadonhos sobre empoderamento. Sem contar o maniqueísmo em mostrar todo e qualquer personagem humano, caucasiano e do sexo masculino como vilanesco, com segundas intenções ou, no mínimo, antipático. Em suma, ainda falta o "audaciosamente indo" das demais iterações da franquia. Ah, mas tem uma personagem principal feminina com nome masculino. Quanta audácia!

 
A utilização de personagens conhecidos pelos fãs é outro ponto questionável. O que Sarek está fazendo ali? Só existem ele e Spock como vulcanos com os quais o espectador possa simpatizar? A personagem principal não poderia ser criada por outros vulcanos? De repente, Spock tem uma "meia-irmã" humana da qual ninguém ouvira falar (Sybok ri sozinho dessa). E Harry Mudd? Um dos episódios em que ele aparece (aquele que envolve loops temporais) é bastante interessante e divertido. Mas não há outro malandro espacial neste universo? São exemplos desnecessários de fan service. E assim acontece com outras aparições e citações que acabam parecendo forçadas.

Sobre as alegorias politicamente corretas que citei no início do texto, o exemplo mais gritante são os klingons, aqui completamente descaracterizados e mostrados como uma "versão espacial" dos supremacistas brancos nos Estados Unidos, que querem que sua raça "seja grande novamente", em clara alusão ao slogan usado por Donald Trump. Mesmo que involuntariamente, os realizadores da série (que se dizem sempre tão preocupados com a diversidade e o respeito às diferenças) mostram que a Federação também oprime. Ou seja, aqueles que dizem lutar pela diversidade são os que pretendem forçar seus modos a todos os demais. E se estes não se sujeitam às diretrizes, automaticamente são inimigos ou intelectualmente inferiores. Pelo menos nesta questão, Discovery traça um panorama fiel do que ocorre na sociedade contemporânea.

Star Trek, enquanto franquia, perdeu o foco desde 2009, com os novos filmes para cinema, que deixaram de lado as características mais básicas de exploração e questionamento, para se tornarem filmes de ação e correria, com poucos momentos realmente memoráveis e de conteúdo. O mesmo acontece com Discovery, que deixa de ser uma obra que discute e inspira, para ser uma produção que assume clara e única posição ideológica, algo que nenhuma das séries anteriores fez. Ou seja, a franquia que sempre foi conhecida por abraçar diferentes vias de pensamento, agora assume um único viés. Não promove uma reflexão, faz propaganda. É o problema dos discursos globalistas atuais: tornaram-se aquilo que pretendiam combater e tentam prevalecer "na base do grito", forçando audiências a algo que nem sempre querem ou precisam e, muitas vezes, desagradando bases de fãs há muito estabelecidas.

 
E quem é o público-alvo de Discovery? Os próprios fãs de Star Trek estão divididos em relação à produção. E o público que abraça os discursos globalistas infundidos na série parece pouco se importar também. Discovery fica à deriva.

Neste sentido, The Orville tem se provado uma série muito mais interessante, embora seu ritmo muitas vezes seja desencontrado, entre tratar assuntos com seriedade ou apresentar tramas com besteirol. Fazer questionamentos ao invés de propaganda em prol de uma agenda. É isto que torna The Orville "mais Star Trek" do que Discovery. Até mesmo a famigerada série Enterprise, com todos os seus problemas, parece ter mais coerência quando comparada com Discovery.

 
Alguns dizem que com os novos filmes e agora com Discovery, Star Trek trocou o idealismo pelo "realismo", para ressaltar as dinâmicas da sociedade atual. E é este um dos pecados. Star Trek deve ser sempre idealista e otimista. Não sou eu quem diz, mas Gene Roddenberry. Não seguir as premissas básicas do criador da obra é pura e simples desvirtualização da mesma, em prol de uma agenda que talvez ele não aprovasse. Se isto é bom ou ruim, só o tempo e os índices de audiência dirão. É um debate que sempre gerou discórdia entre os fãs, já que o tom da franquia começou a mudar a partir de Deep Space Nine, lançada após a morte de Roddenberry

Vi uma análise que resume bastante o sentimento: quando se assistia à Série Original ou à Nova Geração, estas séries apresentavam universos nos quais o espectador desejava se inserir e participar. Em graus menores, o mesmo pode ser dito das demais iterações de Star Trek. Isto, entretanto, não parece ocorrer na atual produção.

A boa notícia é que, do sétimo episódio em diante, Discovery parece ter encontrado um caminho, mesmo que ainda preferindo a correria e a ação ao invés da exploração. Enfim, Discovery se apresenta de forma irregular. Poderia até promover um debate profundo, mas se perde nas próprias inclinações ideológicas de seus realizadores. Em termos de entretenimento, além do desenvolvimento raso dos personagens, resta observar as naves, as batalhas espaciais e explosões, as correrias e demais cenas de ação bem executadas. E ficar na torcida para que os próximos episódios sejam (muito) melhores.