A sensação até o momento é de uma
série que começa de forma irregular, mas que aos poucos parece encontrar o
caminho.
Nos primeiros episódios, apesar
da super-produção e do elenco competente (e assim como muitas produções
atuais), Star Trek Discovery se perde em alegorias politicamente
corretas e "mimimis disfarçados". As reflexões francas que a Série
Original promovia a respeito de questões sociais sob o manto da ficção
científica são substituídas por uma visão estreita e unilateral.
Há pouca exploração. Em apenas um
ou dois episódios os personagens vão a algum planeta e encontram novas formas
de vida e novas civilizações. O foco é um conflito militar pouco interessante
(o interesse fica mesmo em ver como a nave e seu motor ultra-poderoso são
usados). O desenvolvimento dos personagens é irregular, sobrepujado em diversos
momentos por discursos enfadonhos sobre empoderamento. Sem contar o maniqueísmo
em mostrar todo e qualquer personagem humano, caucasiano e do sexo masculino
como vilanesco, com segundas intenções ou, no mínimo, antipático. Em suma,
ainda falta o "audaciosamente indo" das demais iterações da franquia.
Ah, mas tem uma personagem principal feminina com nome masculino. Quanta
audácia!
A utilização de personagens
conhecidos pelos fãs é outro ponto questionável. O que Sarek está fazendo ali?
Só existem ele e Spock como vulcanos com os quais o espectador possa
simpatizar? A personagem principal não poderia ser criada por outros vulcanos?
De repente, Spock tem uma "meia-irmã" humana da qual ninguém ouvira
falar (Sybok ri sozinho dessa). E
Harry Mudd? Um dos episódios em que ele aparece (aquele que envolve loops
temporais) é bastante interessante e divertido. Mas não há outro malandro
espacial neste universo? São exemplos desnecessários de fan service. E
assim acontece com outras aparições e citações que acabam parecendo forçadas.
Sobre as alegorias politicamente
corretas que citei no início do texto, o exemplo mais gritante são os klingons,
aqui completamente descaracterizados e mostrados como uma "versão
espacial" dos supremacistas brancos nos Estados Unidos, que querem que sua
raça "seja grande novamente", em clara alusão ao slogan usado por Donald
Trump. Mesmo que involuntariamente, os realizadores da série (que se dizem
sempre tão preocupados com a diversidade e o respeito às diferenças) mostram
que a Federação também oprime. Ou seja, aqueles que dizem lutar pela
diversidade são os que pretendem forçar seus modos a todos os demais. E se
estes não se sujeitam às diretrizes, automaticamente são inimigos ou
intelectualmente inferiores. Pelo menos nesta questão, Discovery traça
um panorama fiel do que ocorre na sociedade contemporânea.
Star Trek, enquanto
franquia, perdeu o foco desde 2009, com os novos filmes para cinema, que
deixaram de lado as características mais básicas de exploração e
questionamento, para se tornarem filmes de ação e correria, com poucos momentos
realmente memoráveis e de conteúdo. O mesmo acontece com Discovery, que
deixa de ser uma obra que discute e inspira, para ser uma produção que assume
clara e única posição ideológica, algo que nenhuma das séries anteriores fez.
Ou seja, a franquia que sempre foi conhecida por abraçar diferentes vias de
pensamento, agora assume um único viés. Não promove uma reflexão, faz
propaganda. É o problema dos discursos globalistas atuais: tornaram-se aquilo
que pretendiam combater e tentam prevalecer "na base do grito",
forçando audiências a algo que nem sempre querem ou precisam e, muitas vezes,
desagradando bases de fãs há muito estabelecidas.
E quem é o público-alvo de Discovery?
Os próprios fãs de Star Trek estão divididos em relação à produção. E o
público que abraça os discursos globalistas infundidos na série parece pouco se
importar também. Discovery fica à deriva.
Neste sentido, The Orville
tem se provado uma série muito mais interessante, embora seu ritmo muitas vezes
seja desencontrado, entre tratar assuntos com seriedade ou apresentar tramas com
besteirol. Fazer questionamentos ao invés de propaganda em prol de uma agenda.
É isto que torna The Orville "mais Star Trek" do que Discovery.
Até mesmo a famigerada série Enterprise, com todos os seus problemas,
parece ter mais coerência quando comparada com Discovery.
Alguns dizem que com os novos
filmes e agora com Discovery, Star Trek trocou o idealismo pelo
"realismo", para ressaltar as dinâmicas da sociedade atual. E é este
um dos pecados. Star Trek deve ser sempre idealista e otimista. Não sou
eu quem diz, mas Gene Roddenberry. Não seguir as premissas básicas do criador
da obra é pura e simples desvirtualização da mesma, em prol de uma agenda que
talvez ele não aprovasse. Se isto é bom ou ruim, só o tempo e os índices de
audiência dirão. É um debate que sempre gerou discórdia entre os fãs, já que o
tom da franquia começou a mudar a partir de Deep Space Nine, lançada após a morte
de Roddenberry
Vi uma análise que resume
bastante o sentimento: quando se assistia à Série Original ou à Nova Geração,
estas séries apresentavam universos nos quais o espectador desejava se inserir
e participar. Em graus menores, o mesmo pode ser dito das demais iterações de Star
Trek. Isto, entretanto, não parece ocorrer na atual produção.
A boa notícia é que, do sétimo
episódio em diante, Discovery parece ter encontrado um caminho, mesmo
que ainda preferindo a correria e a ação ao invés da exploração. Enfim, Discovery
se apresenta de forma irregular. Poderia até promover um debate profundo, mas
se perde nas próprias inclinações ideológicas de seus realizadores. Em termos
de entretenimento, além do desenvolvimento raso dos personagens, resta observar
as naves, as batalhas espaciais e explosões, as correrias e demais cenas de
ação bem executadas. E ficar na torcida para que os próximos episódios sejam
(muito) melhores.