domingo, 10 de maio de 2015

Barriga cheia

As pessoas adoram reclamar. Reclamar de tudo e de nada. Reclamar da vida e da morte. Reclamar de reclamar. Vivemos em um mundo de tecnologias fantásticas, de produtos realmente inovadores, de facilidades instantâneas. E de motivos mil para reclamar. Ou seja, reclamamos de barriga cheia.

Justamente por ser tudo tão fácil e instantâneo, as pessoas se tornaram "mimadas". Se demora 5 segundos para fazer uma ligação no telefone celular, o aparelho não presta, a operadora é uma porcaria. A internet caiu e demorou 30 segundos para voltar? O provedor é incompetente e é hora de mudar. Algum programa de computador demorou um segundo a mais para carregar? Aquele jogo não rodou a 60 fps?  Hora de reclamar.

Não me entenda mal. Reclamar é salutar e necessário. Mas como qualquer outra situação, quando é feito em demasia, perde o sentido. Ou no mínimo se torna irritante. As redes sociais são um atestado disto. Todos opinam e reclamam como se fossem grandes conhecedores e sábios, muitas vezes sem ter qualquer real noção do que estão debatendo. É o "xingar muito no twitter". Muito barulho por pouca coisa.


O que me traz ao assunto em questão: os filmes de super-heróis e/ou baseados em HQs. E vou me referir apenas a produções live-action, sem contar animações, por exemplo.

Desde 2002 temos, pelo menos, dois filmes de super-heróis lançados por ano (às vezes mais), nos cinemas ou na TV. Alguns excelentes, outros desastrosos. O último ano em que um filme de super-herói não foi lançado? 1985. Depois disso, apenas em 2001 não houve lançamento (provavelmente por conta dos ataques terroristas contra o World Trade Center, que tiveram grande impacto na sociedade americana e na sua indústria cinematográfica). Ou seja, se descontarmos este ano, são 30 anos de lançamentos ininterruptos.

Lembro dos meus tempos de infância, em que as produções disponíveis aos meus olhos eram os seriados clássicos do Batman, Hulk, Shazam, Homem-Aranha e da Mulher-Maravilha, além dos dois telefilmes do Capitão América. O único filme de super-herói "de verdade" era Superman - O Filme, de 1978.

 

E a escassez de lançamentos continuou nos anos 1980. Exceto pelos filmes do Super-Homem nos cinemas, o que mais tínhamos? O filme da Supergirl e os telefilmes do Hulk. Até vale mencionar o filme do Monstro do Pântano, de 1982. E ainda podemos citar os filmes do Conan e Sonja.


Somente em 1989, o panorama começou a mudar, com o lançamento de Batman, que reacendeu a bat-mania e reabriu algumas portas para outros personagens. Na mesma onda vieram Justiceiro, Capitão América, Flash, Dick Tracy, Tartarugas Ninja, Rocketeer, O Corvo, Fantasma, O Sombra, Juiz Dredd, Darkman, Spawn, Aço e Quarteto Fantástico (naquele filme pra lá de B, nunca lançado oficialmente).


Apesar da grande quantidade, geralmente a qualidade e o orçamento das produções eram baixos, o que levava a tramas limitadas, apressadas e pouco fiéis aos materiais-fontes. Nesta lista podemos incluir o fraco telefilme da Liga da Justiça. Sem contar as invencionices de vários produtores de Hollywood, que simplesmente alteravam demais os personagens e eventos de determinada mitologia. E junte a isso a sanha monetária e o desejo de ganhar ainda mais dinheiro, que geravam produções desastrosas, como o famigerado Batman & Robin, de 1997.

 

Aí veio o ano de 1998 e filmes com Blade - O Caçador de Vampiros e A Máscara do Zorro reacenderam o interesse do público. Ambas as produções contavam com orçamentos dignos e bons roteiros, resultando em adaptações competentes.


O resto é história. O sucesso de Blade alavancou a produção do primeiro filme dos X-Men. O sucesso dos X-Men possibilitou o primeiro filme do Homem-Aranha. Vieram depois Hulk, Demolidor, Hellboy, Justiceiro, Elektra, Constantine, Motoqueiro Fantasma, Quarteto Fantástico, Liga Extraordinária. Novos filmes do Batman e do Super-Homem.

 
 
 

E, então, o divisor de águas da era moderna dos filmes de super-heróis: Homem de Ferro, primeiro filme produzido exclusivamente pela Marvel. Sucesso absoluto, que possibilitou a criação do Universo Cinematográfico Marvel, cuja Fase 2 se encerra com o filme do Homem-Formiga. E aí é aquilo que todos sabem: Hulk, Thor, Capitão América, Vingadores, Guardiões da Galáxia e tantos outros personagens da Casa das Idéias a ganhar as telonas e as telinhas.

 

A DC não ficou inativa, embora não tenha tido o mesmo ritmo da Marvel. Além da excelente trilogia do Batman, lançou adaptações de Watchmen, V de Vingança, 300, Lanterna Verde, Jonah Hex, Spirit. Um novo filme do Super-Homem. E para correr atrás do tempo perdido, já tem programados tantos outros, incluindo Flash, Mulher-Maravilha, Shazam, Esquadrão Suicida, Liga da Justiça. Sem contar o grande encontro de Batman e Super-Homem.

 

As séries de televisão estão repletas de super-heróis: Agents of SHIELD, Agent Carter, Gotham, Arrow, Flash, Constantine. A excelente série do Demolidor e as vindouras adaptações de Supergirl, Punho de Ferro, Luke Cage, Jessica Jones e os Defensores.


E quando tratamos de séries, precisamos mencionar Smallville, que mesmo com seus defeitos e invencionices, teve virtudes suficientes para se manter por 10 anos no ar.


Vivemos em uma época na qual temos definido um extenso e variado calendário de lançamentos cinematográficos, que se darão até o ano de 2020, no mínimo.


E mesmo com toda essa profusão de filmes e personagens fantásticos, as pessoas conseguem arranjar argumentos para reclamar. E isso que estamos tratando só de filmes de super-heróis. Se colocarmos outras grandes franquias cinematográficas na lista, fica ainda mais difícil imaginar que alguém possa reclamar de todo esse entretenimento. Mas reclamam. Novamente, criticar é mais do que necessário e salutar. Mas as pessoas nem esperam o lançamento de um filme para reclamar. Reclamaram do Michael Keaton, reclamaram do Heath Ledger, reclamaram do Chris Evans, reclamaram do Ben Affleck, reclamaram do Jared Leto. Reclamam que o filme tem explosão. Reclamam que o filme não tem explosão. Reclamam que o Hulk fala, reclamam que ele não fala.

Talvez estas pessoas nunca tenham assistido aos seriados de matinê dos anos 1940 ou ao seriado do Super-Homem dos 1950, com todas as limitações e pouca fidelidade às HQs. Ainda assim, estas produções têm um valor histórico inestimável e devem ser vistas por todo fã de HQs, cinema e super-heróis, para que se tenha uma melhor percepção do longo caminho percorrido até os dias de hoje, com as grandes super-produções milionárias, que ainda insistimos em tomar como garantidas (e muitas vezes desdenhamos do esforço para realizá-las).

 
 

É claro que um dia a bolha vai estourar. Com tantos filmes, séries, animações e jogos, em algum momento o interesse vai diminuir. O grande público vai se cansar. Mas os fãs continuarão fiéis, desde que as tramas sejam inteligentes, os roteiros sejam bem escritos, os efeitos especiais sejam competentes e as produções façam justiça aos personagens adaptados.


No fim das contas, nunca tivemos tantas adaptações tão bem produzidas, como vem acontecendo nas duas últimas décadas. Portanto, enquanto a bolha não estoura, o melhor que podemos fazer é aproveitar ao máximo. E reclamar um pouco menos. Dos filmes, das HQs, das animações, dos jogos. Da tecnologia. Da vida. Nestes termos, reclamaremos sempre de barriga cheia.

Se for para reclamar quando a barriga dói de verdade, reclamemos infinitamente dos políticos e da politicagem, dos serviços incompetentes, da corrupção, da falta de educação, segurança e saúde. Do povo ignorante. Da política, do futebol e da religião (os três grandes fatores que não deixam este país progredir de fato). E mesmo assim, só reclamar não resolverá estas questões. Mas tudo isto já é assunto para outra conversa.